A Darkside Books lançará no próximo mês a edição definitiva de
O Colecionador, clássico de John Fowles, e em parceria com a Biblioteca do Terror publica agora a versão traduzida de uma das entrevistas mais completas do autor cedida à BBC em 1977.
Essa entrevista fornece ao leitor uma nova perspectiva para analisar a obra do autor, Fowles conta detalhes pessoais sobre sua infância e suas motivações, explicando sobre a origem de suas críticas socias, sempre presentes em seus livros e ao contexto ao qual está inserido como autor. John Fowles faleceu aos 79 anos em 5 de novembro de 2005, decorrência de uma insuficiência cardíaca.
No dia 23 de outubro de 1977, John Fowles foi entrevistado por Melvyn Bragg para o programa de televisão da BBC “The Lively Arts”. O que aparece a seguir é uma transcrição.
MELVYN BRAGG INTRODUÇÃO:
John Fowles é um dos poucos autores britânicos tratados com respeito pela imprensa e com alegria pelo grande público. Poucos são os autores de ficção séria que vendem milhares de livros capa dura pelo país. Menos ainda são os que vendem centenas de milhares na América. Seu novo livro é um romance intitulado Daniel Martin. É seu quarto livro e este também será, de acordo com os editores aqui e afora, um tremendo sucesso na lista dos mais vendidos, além de tomar lugar de destaque entre as páginas dos críticos mais sérios.
O Colecionador foi o primeiro romance de John Fowles. Ele foi adaptado para o cinema num filme no qual Terence Stamp faz o papel do jovem cuja a obsessão por colecionar borboletas vem acompanhada de uma obsessão por capturar e manter em cativeiro uma jovem de Hampstead. Este é também o lugar onde John Fowles estava morando na época.
Mas o livro que o tornou uma celebridade literária internacional foi The Magus. Ele vendeu surpreendentes 4 milhões de cópias ao redor do mundo. Ele o escreveu diversas vezes por um período de nove ou dez anos, enquanto estava em Hampstead e arredores entre seus 20 e 30 anos. Essa é uma história sobre as provações e tormentos vividos por um jovem professor em uma ilha grega nos anos 50. Por razões cada vez mais misteriosas, ele passa por uma série de suplícios e armadilhas e, assim como em todos os romances de John Fowles, a metafísica e as reflexões estão dispostas de maneira tão densa quanto o enredo dramático.
Fowles tem 51 anos, ele é casado e vive com sua esposa numa bela casa em Lyme Regis, com vista para Cobb, que é onde ocorre cenas notáveis de outro romance seu, A Mulher do Tenente Francês. O jardim reflete sua paixão por botânica e sua casa é tão grande e ampla quanto seus livros.
MELVYN BRAGG:
Você disse uma vez, creio eu, que escritores tornam-se escritores muito jovens, quer saibam disso ou não. É possível ser específico de alguma forma sobre como você se tornou escritor?
JOHN FOWLES:
Eu falei isso de forma geral… como me sinto quanto a isso se aplica a qualquer escritor. O que me interessa neles como espécie é a obsessão pelo ofício, o fato de que escritores tem que estar sempre escrevendo. Acho que isso provavelmente vem da sensação de que algo é irrecuperável. Na vida de todo escritor há um sentimento de perda maior do que na das outras pessoas. E acredito que eu deva ter sentido isso. Eu não sabia disso acho que até dez ou quinze anos atrás. Na verdade, você precisa escrever livros para começar a entender esse sentimento. Existe um tipo de regresso nos livros… uma tentativa de retornar a um mundo perdido.
BRAGG:
Já que estamos falando disso, o que você poderia dizer sobre a sua infância que o levou ou o que levaria um futuro biógrafo a dizer: ah, sim, nessa época ele já era isso, ou aquilo, ou aquilo outro?
FOWLES:
Eu cresci em Leigh on Sea, uma cidade suburbana, parte de Southend on Sea. Eu levei uma vida normal de qualquer criança suburbana de classe média, mas o que me impediu de me tornar pouco a pouco um adulto suburbano normal de classe média foi meu amor pela natureza. Lembro que desde bem pequeno eu sempre amei coisas verdes, amava ir para o interior. Eu era sortudo. Tinha um tio que fazia História Natural e um primo que também. Esses foram os pontos altos dos meus primeiros dez anos, sair para caçar borboletas, ou observar pássaros, ou fazer caminhadas. Foi aí que Hitler me ajudou muito, porque tivemos que evacuar a cidade e ir para Devon, onde vivi cinco anos numa vila remota. Essa foi uma experiência que me moldou. Eu era uma criança solitária, mas a natureza sempre foi minha amiga, mais do que outros garotos.
BRAGG:
Quando você diz que era solitário, você acredita que esse tipo de solidão foi enriquecedora por um lado e, por outro lado, um bom treinamento para a vida solitária de um escritor?
FOWLES:
Creio que o isolamento é um sinal muito muito forte de um futuro escritor, a inabilidade…
BRAGG:
Ou solidão, qual deles? Isolamento ou solidão? Porque você pode ser solitário sem estar isolado.
FOWLES:
Sim, você está certo em fazer essa distinção. Acho que a sensação de uma solidão particular é mesmo uma definição melhor. Eu não estava isolado de fato, é claro. Eu ia pra escola e tudo o mais. Só que hoje eu acho que se me mostrassem uma turma cheia de crianças e me pedissem pra apontar os futuros escritores, eu provavelmente procuraria pelos inarticulados. Acima de tudo, por aqueles que não se dão bem sob nenhuma circunstância, pelos que fogem de uma discussão e depois inventam um novo cenário pra essa discussão que acabou de acontecer. É importante para um escritor viver em dois mundos. E eu diria que isso é um fator determinante… a inabilidade de viver na realidade, então você precisa escapar para mundos imaginários. Diria isso sobre todo tipo de arte, na verdade, mas sobretudo dos escritores.
BRAGG:
Esse é você agora, em 1977. Você lembra de sentir-se assim quando tinha 15 ou 16 anos?
FOWLES:
Não, de forma alguma.
BRAGG:
Porque você você foi representante de sala na escola, bom no críquete, esse tipo de coisa, o que me parece…
FOWLES:
Sim, sim. Eu era uma criança dividida, certamente. Quero dizer, eu era muito bom no críquete e adorava o jogo. Eu ainda adoro. Assim, você sabe, quando tem uma partida passando, ninguém faz nada aqui em casa. Mesmo assim, atingi o auge da minha carreira no críquete… uma vez quando peguei a segunda bola do Leary Constantine num mergulho. Sabe, acho que depois disso não dava pra progredir muito mais. Aquele tipo de escola pública e o First Eleven cricket, que era pra onde eu ia durante a guerra, tinha um número bom de jogadores profissionais jogando contra você, era maravilhoso.
BRAGG:
Há essa, imagem não somente de escritores ingleses do século XX, de que quem frequenta a escola pública a odeia, se revolta contra ela, e se torna uma vítima desnecessária dela – pelo menos do ponto de vista deles -, em vez de ser bom no que a escola espera que eles sejam. Isso aconteceu com você também, ao menos em parte?
FOWLES:
Eu não era feliz, ao menos não nos primeiros dois anos na escola pública. Passei pela experiência de reclusão, mas aí acho que acabei fazendo parte do sistema, porque você sabe como as escolas públicas são boas em fazer lavagem cerebral nos garotos. Eu certamente passei por uma. Os representantes de sala naquela época tinham um poder extraordinário. Eu era responsável pela disciplina de 600 garotos, então todos os dias eu tinha que organizar patrulhas… sabe, pra pegar os meninos que estavam do lado de fora depois do sinal e tudo o mais. Todos os dias eu fazia um julgamento, onde eu era tanto o juiz quanto o executor. É horrível agora quando eu… eu odeio encontrar algum ex-aluno daquela escola, porque fico pensando, será que eu já bati nele?
BRAGG:
Só que na época você se sentia culpado. Você achava que era assim que as coisas eram?
FOWLES:
Eu me juntei ao sistema. Mais uma vez a guerra me ajudou nisso, porque eu fui direto para a Marinha Real. Deixei de ser um pequeno líder na escola para ficar na base da cadeia na Marinha, e eu ressentia disso compreensivelmente. A Marinha me ajudou a descobrir quem eu era, alguém com um ódio profundo por qualquer tipo de autoridade, qualquer tipo de disciplina imposta. Acredito de verdade que eu deixei pra trás toda aquela história da escola pública naqueles dois anos. Não dá pra deixar essas coisas pra trás imediatamente, mas pouco depois, com certeza eu me sentia uma pessoa diferente quando terminei meus estudos em Oxford.
BRAGG:
Na Univesidade de Oxford, você lia?
FOWLES:
Eu lia francês.
BRAGG:
Você começou a escrever em Oxford, ou sua carreira de escritor já tinha começado na escola?
FOWLES:
Não, não, não, isso foi depois. Acho que talvez no meu último ano em Oxford, eu estava timidamente tentando escrever poesia na época.
BRAGG:
Sim.
FOWLES:
Eu estava muito mais envolvido com meu pequeno grupo de amigos na faculdade, jogando críquete, bebendo, fazendo botânica ou algum trabalho, naquele tempo… nós tínhamos três anos sem exames. Você só precisava fazer a prova final, o que quer dizer que ninguém fazia nada até os últimos seis meses daqueles três anos.
BRAGG:
Então esses três anos em Oxford foram de muita reflexão e exploração dos seus interesses pessoais, não é?
FOWLES:
Com certeza. Você está desdenhando demais disso.
BRAGG:
Não estou, não. Eu acho que é muito…
FOWLES:
Na verdade, esses anos foram valiosos para descobrir ou colocar mais em foco o que você é. Eu era muito mais confuso com uma personalidade dispersa do que eu…
BRAGG:
Eu acho que preciso me corrigir, porque eu não desdenho disso de forma alguma, se a pessoa tem essa oportunidade, que eu também tive. Eu tirei três anos de licença para reflexão, o que é uma forma maravilhosa de passar esses três anos.
FOWLES:
Certamente, gostei da forma como você disse isso. É isso que eu detesto na Oxford moderna, sabe. Estou falando da pressão que põem pra você conquistar algo, o que está destruindo o valor maior do sistema de Oxford e Cambridge… o ócio, o não saber para onde você está indo.
BRAGG:
E você saiu de Oxford e acabou, de certa forma, fazendo parte do tradicional… não estou desdenhando, mas descrevendo precisamente… do tradicional depósito de graduados de Oxford que não sabem o que querem fazer. Eles meio que acabam indo todos dar aula ou algo assim, não?
FOWLES:
Sim.
BRAGG:
Na sua geração?
FOWLES:
Eu fui dar aula por um ano numa universidade francesa, o que soa muito pomposo, mas eu era só um tipo de assistente com mais autoridade. O que também foi uma experiência interessante, porém solitária, mas me permitiu passar um ano numa cidade provinciana da França.
BRAGG:
Onde ela ficava exatamente?
FOWLES:
Poitiers, e eu fiz amigos franceses. Outra coisa sobre a minha geração, claro, é que por causa da guerra, o exterior só surgiu depois do que pra muita gente. Eu tinha um tipo de caso de amor com a França, o qual eu nunca superei e ainda tenho. E de lá, eu podia ir para Winchester e me tornar um professor de escola pública. Tive uma ou duas ofertas de trabalho bem interessantes, mas acabei aceitando outra mais peculiar. Eu queria trabalhar lá porque queria ficar no exterior por mais tempo. Fiquei dois anos lá.
BRAGG:
Isso foi na ilha de…?
FOWLES:
Spetses. E mais uma vez foi um caso de amor, só que com a Grécia, que era um país completamente diferente naquele tempo.
BRAGG:
Mas novamente foi solitário e com bastante tempo pra leitura.
FOWLES:
A gente lia bastante. No livro em que baseei isso tudo, The Magus, havia apenas um inglês na escola… na verdade havia sempre dois ingleses… e eu fiz um grande amigo pra vida inteira lá. E você sabe quando uma pessoa faz amigos gregos.
BRAGG:
Depois disso, você sentiu que precisava tentar ir para outro lugar?
FOWLES:
A Grécia foi o que me levou a querer escrever. Eu escrevia um pouco lá. Acabei voltando pra Inglaterra e hoje posso dizer que tomei uma ou outra decisão inteligente como escritor. Ou seja, aceitei trabalhos ruins quando me ofereceram melhores, mas ainda acho que…
BRAGG:
Por que você acha que isso é inteligente?
FOWLES:
Porque se você vai se tornar um escritor, você precisa pegar o tipo de trabalho que não exige muito de você. Escrever livros é um negócio que exige demais do seu tempo e do seu psicológico. Eu não acredito que um bom professor tenha grandes chances de ser um bom escritor. Um mau professor, talvez. Porque ele não estaria doando tanto de si em sala, além da simples questão de tempo. Lecionar é útil, claro, porque te permite algum tempo livre.
BRAGG:
Sim, então quais trabalhos ruins você aceitou?
FOWLES:
Lecionei por um ano numa escola para adultos em Hertfordshire, Ashridge. Novamente, foi interessante porque eles estavam fazendo cursos lá onde administradores e oficiais do comércio da união se encontravam. Essa foi a primeira vez que eu conheci mesmo socialistas e ouvi a linha socialista sendo apropriadamente aplicada.
BRAGG:
Isso te educou sobre política? Digo, mudou sua ideia de política?
FOWLES:
Não sou uma pessoa muito política, na verdade. Uma das minhas teorias é de que os problemas que o mundo está enfrentando agora não podem ser resolvidos politicamente. Eu gostaria muito mais de ver uma ocupação pelos sociólogos e biólogos. Creio que estamos vivendo uma crise biológica e não acho que os termos da política contemporânea vão ao encontro da situação atual, de forma alguma.
BRAGG:
Crise biológica no sentido de...?
FOWLES:
No sentido de superpopulação.
BRAGG:
Recursos naturais…
FOWLES:
Recursos naturais, poluição e todo o resto.
BRAGG:
Você não acredita que eles estão sob controle?
FOWLES:
Eu não acredito que eles estão sob controle. Não vejo como eles podem ficar, quando a questão é discutida noventa por cento das vezes em termos de trabalho e capital, de partidos Conservador e Trabalhista. Os franceses tem um grupo novo. Eles se autodenominam “les Verts”. Uma analogia aos “les Rouges”, os Vermelhos. Agora, se nós tivéssemos um partido verde nesse país, eu me uniria a eles na hora. Assim, por um país ecologicamente e cientificamente fundamentado. Acho que apenas os cientistas podem realmente governar a sociedade hoje em dia e tomar decisões sobre o futuro.
BRAGG:
Você acha que há chance de chegar o momento em que eles terão a oportunidade de fazê-lo?
FOWLES:
Filósofos se tornarem reis? Não, não até que haja um banho de sangue espantoso e uma catástrofe universal.
BRAGG:
Mas esses trabalhos que você teve na Inglaterra foram essencialmente como professor?
FOWLES:
Sim, sim. Dei aula por muitos anos em Hampstead, no curso de secretariado… para estudantes estrangeiras… o que eu gostei bastante. Mas você ainda não viveu até que tenha dado aula pra meninas siamesas ou lido Macbeth com elas. Lembro de lermos Romeu e Julieta, e elas não entendiam o que era tão trágico em Romeu e Julieta, porque afinal eles tinham desobedecido seus pais e mereciam tudo que aconteceu com eles. Mas era divertido.
BRAGG:
Quando você disse que esses trabalhos não tomavam muito do seu tempo, ou tomavam? Eles eram…
FOWLES:
Bem, eles tomavam, mas no sentido de que eu sabia que não era isso o que eu realmente queria estar fazendo. Eles tomavam tempo, mas eu descobri que podia me desligar facilmente deles quando chegava em casa. Escrevi O Colecionador durante as noites. Pra falar a verdade, o escrevi em um mês durante as férias. O primeiro rascunho. De certa forma, essa pressão é boa para um jovem… você sabe como jovem escritores pensam, “ah, se eu tivesse mais tempo… tempo pra pensar”. Mas de certa forma acho que esse tipo de pressão é boa para um jovem escritor.
BRAGG:
Então você começou a escrever com vinte e poucos anos, é isso…?
FOWLES:
Acho que foi… sim, acho que foi por aí.
BRAGG:
Mas não foi até você chegar quase no final dos trinta que seu primeiro livro foi lançado?
FOWLES:
Sim.
BRAGG:
Como foram esses dez anos em que você escrevia, mas não era publicado? Você ficava num estado de expectativa, ou frustração, ou ambos, ou o que?
FOWLES:
Acho que principalmente frustração, sim. Não era como se eu estivesse enviando livros e sendo rejeitado. Eu apenas sabia que eles não eram bons o suficiente. Em parte, eu também ainda estava preso ao The Magus nesse período. E eu sabia que ele não era tudo o que tinha que ser, então de novo eu passaria seis meses, então nove meses trabalhando nele, para novamente me ver derrotado e deixá-lo de lado. Escrevi O Colecionador mesmo pra tentar sair daquele atoleiro em que eu me encontrava por causa do The Magus.
BRAGG:
Você disse que o escreveu em um mês?
FOWLES:
Escrevi o primeiro rascunho em um mês, sim, depois revisei ele consideravelmente. Não levei um mês, sabe, entre o começo e o final do meu trabalho.
BRAGG:
Foi adaptado instantaneamente para o cinema?
FOWLES:
Não consigo lembrar o tempo exato que levou… mas sim, foi bem rápido.
BRAGG:
E isso permitiu que você encerrasse sua carreira no magistério, não?
FOWLES:
Sim, acho que vendi os direitos por 5.000, o que imagino ser uma barganha, mas nunca me arrependi de pegar esse dinheiro. Realmente me libertou do magistério.
BRAGG:
Você desistiu de dar aulas instantaneamente e disse: OK, é isso aí, vou ser um escritor em tempo integral?
FOWLES:
Sim, quase isso.
BRAGG:
E o que isso envolveu? Você fugiu pro interior ou ficou…?
FOWLES:
Não, a gente continuou morando em Londres por, não lembro exatamente agora, uns dois ou três anos. E então comecei a sentir que como eu não gostava da vida literária e tudo que ela envolve, eu não precisava gostar mais de Londres. Não por causa de Londres, mas porque eu não gosto mais de cidades grandes. E também me senti cada vez mais atraído pelo interior, assim, um dia nós simplesmente levantamos e começamos a procurar uma casa. Não é porque um ou outro ancestral meu eram pessoas do oeste do país. Por mais que eu sinta que meu lar é a Inglaterra, certamente é no Oeste da Inglaterra. Parcialmente é por conta dos anos que passei em Devon durante a guerra. Os ancestrais do meu pai vieram da divisa de Somerset/Dorset. Tenho uma avó da Cornualha. Tem algo a ver com o temperamento do Oeste da Inglaterra que sempre me atraiu.
BRAGG:
Você veio pra cá principalmente por causa do cenário ou construiu uma vida social, uma vida anti-literária aqui, ou…?
FOWLES:
Não, de forma alguma. Nunca precisei de outros seres humanos, pra ser sincero, o que não significa que não gosto de encontrá-los às vezes. Mas preciso menos de outras pessoas do que a maioria. Tem muito mais a ver com coisas misteriosas, como o clima, o tipo de precocidade do Oeste da Inglaterra, que é algo que sempre amei. O fato de que a primavera começa aqui um pouco mais cedo do que no resto do país, e eu amo o mar. Não acho que poderia viver hoje sem o barulho do mar. Sou uma dessas pessoas misteriosas que amam litorais, praias, beira-mar, e se me pedissem para descrever um lugar perfeito pra viver, minha única exigência é que você sempre possa ir dormir ao som do mar.
BRAGG:
Em The Magus, tem muitas… assim como em vários outros livros seus, acredito que na maioria, mas se destaca particularmente em The Magus… tem sempre brincadeiras acontecendo. The God Game era o título original ou um possível título para ele…?
FOWLES:
Sim.
BRAGG:
E as brincadeiras são variadas e criativas…mas também são todas sobre a mesma coisa. Seja lá onde as pessoas estão… se é verdade ou mentira, e se as mentiras estão mais próximas da verdade, e do que espera-se que seja a verdade, e a diferença entre verdade e mentiras. Também a diferença ou comparação entre a verdade e a ficção?
FOWLES:
O caminho para o romance está aí. Não chamaria isso de uma receita para escrever um romance. Talvez seja porque eu sou muito apegado à cultura francesa… li bastante sobre a nova teoria do romance… pode ser por isso que tenho mais consciência desse tipo de ficcionalidade ou de ficção do que a maioria dos escritores. Isso não quer dizer que as verdades apresentadas através do artifício da ficção são necessariamente verdades artificiais. Talvez elas sejam verdades “sentidas”. Num romance que acabei de escrever, uso a expressão “sensação certa”. De certa forma, um romance é sobre como ter essa sensação certa. Acredito que as pessoas são favoráveis a esse tipo de verdade. Elas podem não analisar tanto isso quanto o escritor o faz, mas não acho que elas exijam uma verdade de que seja discutivelmente verificável. Acho que elas estão preparadas para sentir ao longo do livro. A maioria dos escritores que admiro se comunicam de fato através de sensações… Lawrence, Hardy e outros.
BRAGG:
Por que você quer brincar tanto com o leitor, dizendo uma coisa pra ele e depois falando: “Não, isso não é verdade”? Em The Magus, Conchis está constantemente dizendo…
FOWLES:
Isso é verdade sobre The Magus, que foi deliberadamente concebido como um livro-brincadeira, ou de brincadeiras se preferir, na sua fase final. Eu não considero que as brincadeiras que fiz em A Mulher do Tenente Francês sejam isso mesmo. Veja bem, dei dois ou três finais possíveis. Em um ponto eu saí do tipo de ilusão da ficção para entrar em outro tipo de ilusão. Eu não sinto mesmo que isso é uma brincadeira. Eu penso é que são verdades literárias que podem ser apresentadas.
BRAGG:
E essas verdades literárias tem a ver com a sensação certa?
FOWLES:
Algumas verdades literárias são sobre a natureza da ficção. As que eu acabei de mencionar em A Mulher do Tenente Francês são, a meu ver, verdades sobre a natureza artificial da ficção. Mas isso nada tem a ver com outros tipos de verdades no livro, que são realmente sobre sensações e que, claro, expressam opiniões sobre a vida. Eu me considero um socialista, mas não penso que um romance é o melhor lugar para fazer propaganda explicitamente socialista. O melhor lugar pra isso é num ensaio, ou num livro de não-ficção, ou, obviamente, no envolvimento de fato na política.
BRAGG:
Você acredita que seu socialismo aparece nos seus livros apesar de…?
FOWLES:
Isso eu não sei. Não sei mesmo, mas fiz um tipo de resolução há muitos anos atrás de que não colocaria muito das minhas opiniões políticas nos meus livros. Se elas entram, são filtradas e…
BRAGG:
Mas você coloca muito… me parece que você coloca muito das suas opiniões filosóficas pessoais nos seus livros.
FOWLES:
Sim, eu coloco. Sim, sim.
BRAGG:
Por que então o romance tem mais capacidade de conter opiniões filosóficas do que políticas?
FOWLES:
Pois bem... eu faço isso, mas é provável que esteja errado, porque eu não penso que filosofia séria alguma poderia ser apresentada através de um romance. Não vejo como isso seria possível. Opiniões sobre como a vida funciona e sobre o tipo de importância que você dá para as diferentes formas de viver e todo o resto. Essa é minha opinião pessoal como escritor. É função do leitor, claro, aceitar ou rejeitar.
BRAGG:
Quão grande…?
FOWLES:
Se você pensar em Jane Austen, não há valor filosófico algum em nenhum de seus trabalhos. Mas sabemos que ela se colocava numa posição moral centralizada, que foi de grande importância para a literatura inglesa e, eu diria, para a vida inglesa. Informou muito sobre a vida da classe média na Inglaterra.
BRAGG:
Você está constantemente se referindo a outros escritores, muitos deles ingleses. Você se vê como parte de um grupo e de uma tradição de escritores?
FOWLES:
Me vejo bastante, apesar de muitos críticos me dizerem que não sou, mas muito da tradição inglesa, apesar de ter sido muito mais influenciado pela cultura francesa do que a maioria dos escritores ingleses. Não existem escolas modernas para escritores ingleses. Creio que esse é um dos problemas do romance inglês. Vivemos tão distantes, estamos desconectados. Também não temos nenhum tipo de apoio das universidades. Não acho que está tudo errado, sabe, a respeito do suporte que as universidades americanas dão à ficção e aos problemas da ficção. E parte do trabalho teórico americano sobre ficção é bom. Não concordo com tudo, mas pelo menos ele existe e está sendo debatido. Aqui você tem que estar morto para alguém te notar de verdade. Minha parte inglesa entende isso. É um bom princípio dizer isso, até uma pessoa morrer e então ser esquecida ou ignorada, mas não ajuda o romance em geral.
BRAGG:
Você sente que apesar de viver em Lyme Regis, você é como um exilado aqui?
FOWLES:
Por muitos anos me senti exilado da sociedade inglesa, talvez particularmente da classe média inglesa. Nunca me senti exilado da Inglaterra em si, do seu clima, do seu interior, suas cidades, seu passado, sua arte, mas sim, sim, me sinto exilado. Penso que é uma boa coisa para um escritor. Se um escritor não está em exílio, suspeito que ele está com um problema sério.
BRAGG:
Por que?
FOWLES:
Porque penso que se você se identifica totalmente com a sociedade em que vive, deveria estar outra carreira, na qual seria ativo na sociedade. Não acho que teria aquele distanciamento essencial, a habilidade de julgar e criticar a sociedade, porque outra função importante do romance, como sabemos, é corrigir a sociedade, criticá-la.
BRAGG:
Você acha que o romance tem esse poder ainda hoje?
FOWLES:
Ah, sim… tenho certeza. Mas se os romances contemporâneos estão realmente fazendo isso, aí já não sei. Tenho certeza de seu poder para fazê-lo, sim. Por exemplo, Solzhenitsyn obviamente o fez há pouco tempo com a Rússia, acredito que Bellow também deva ter feito ou Herzog, na América. Joe Heller fez isso na América. Não acho que está além da capacidade do romance. Talvez esteja além da capacidade dos escritores ingleses contemporâneos.
BRAGG:
Já pensou em se mudar para o exterior, para então sentir-se em exílio da britanicidade? Já pensou em ir escrever no…?
FOWLES:
Não, porque como eu disse, me sinto exilado de vários aspectos da sociedade inglesa, mas não da Inglaterra. Assim como vários autores bem sucedidos, em termos financeiros, já pensei em fazer isso por causa da situação do imposto. Mas como sou um socialista e acredito que os ricos devam pagar mais impostos de qualquer forma, vejo como seria errado. Também acredito que escritores, mais do que outros artistas, deveriam viver na cultura onde está seu dialeto, onde sua língua é falada. Não acho que ajuda o escritor, exceto em um ou outro caso excepcional, se exilar fisicamente de sua sociedade. Viver em um ambiente com outra língua, outra cultura e tudo o mais.
BRAGG:
Você já disse que um dos temas em Daniel Martin, que é seu livro mais recente, é essa britanicidade. O que você quer dizer com isso?
FOWLES:
Várias coisas, na verdade. Mas suponho que principalmente esses jogos de raramente dizer o que você realmente quer dizer, uma certa inexperiência e inocência, não importa o quão sofisticados possamos parecer, um certo ar de superioridade ou seja lá o que nos distingue dos galeses, escoceses, australianos e americanos.
BRAGG:
Quando você falou de jogo, estava falando de jogos como críquete?
FOWLES:
Estou falando mais ou menos sobre o inglês classe média. Não, eu falei jogos no sentido do Stephen Potter, a maneira como a maioria das conversas na classe média… ninguém está anotando um placar, mas os ingleses são cautelosos quando dizem o que sentem e o que querem dizer de verdade. Com isso quero dizer...
BRAGG:
Você fala da classe média?
FOWLES:
Posso detectar traços disso em outras classes inglesas, mas acho que é uma coisa particular da classe média. Pra mim, isso é uma coisa que nos distingue claramente da América. Todo inglês que vai pra América tem problema com ironia. Tem vários tipos de coisas irônicas que você pode dizer para outro inglês, que o americano, mesmo um americano inteligente, não vai entender. Você precisa dizer diretamente o que quer lá para se comunicar.
BRAGG:
Você acha isso restritivo?
FOWLES:
Estranhamente, eu tanto gosto como desgosto disso. A América por alguns meses é maravilhosa. As pessoas dizem diretamente o que elas querem dizer, são francas, honestas, objetivas, e aí você começa a sentir falta da desonestidade inglesa, das brincadeiras. Lembro de três semanas bem desagradáveis em Hollywood uma vez, em que fiquei cansado dessa objetividade americana. Por acaso, alguém me apresentou ao Peter Ustinov. Passei uma noite sozinho com ele e foi simplesmente incrível. Não foi porque ele era engraçado, um grande contador de histórias, mas por encontrar outra mente que entendia todos os fatos sobre as brincadeiras e esses jogos ingleses.
BRAGG:
Em The Magus, outro ponto que você levanta muito é a crença dentro do livro, que pode ou não ser sua, não sei, da importância do imprevisto. Você repete constantemente essa palavra. Você a usa em A Mulher do Tenente Francês também, com muita liberdade… mas você usa. Vamos falar do The Magus, você a usa muito lá. O que você quer dizer com ela?
FOWLES:
Suponho que venha do lado da história natural da minha vida. Se você observar a natureza de perto, não pode deixar de notar o papel que o imprevisto tem no comportamento diário do pássaro mais comum, dos animais e das plantas e outros. Percebo que minha escrita é um processo cheio de imprevistos, não do sentido de ser arriscado ou perigoso, mas sim no de que… o acaso tem um grande papel nela. Não sei de onde vem as boas ideias. Não sei como alguns dias as palavras vem certinhas e em outros elas não vem. Não sei porque os personagens não fazem o que você planejou. Parece bobo. Você quem inventou o personagem. Ele deveria ser sua criatura, mas como você bem sabe, tem horas misteriosas nas quais os personagens dizem, “eu não vou falar assim. Você pode ter planejado isso, mas eu não vou fazer.” Você ignora essas situações, nega sua existência a muito custo. Pra mim, é uma simples questão de imprevisto. Existe um mistério aí, sabe.
BRAGG:
Por que você é tão fascinado em promover a ideia de que a noção de mistério deva ser cultivada?
FOWLES:
Por mais estranho que pareça, não acredito que a certeza traz felicidade para o ser humano. Uma evidência muito forte de que nos falta mistério é o enorme sucesso de um gênero literário, ou seja, das histórias e thrillers de mistério, de detetive, de espionagem. Como eu disse, esse tem sido o gênero mais bem sucedido comercialmente do último século. Acredito que isso se deve muito à ilusão de que a ciência resolveu todos os nossos problemas, enquanto a maioria das pessoas estão vivendo suas vidinhas e consciente ou inconscientemente sabem que muito do que acontece simplesmente não é explicado. E penso que todo tipo de arte está presa à (1) ideia do desconhecido e (2) à ideia do inconhecível, do impossível.
BRAGG:
Como você…?
FOWLES:
O mistério pra mim tem energia, assim como respostas absolutas e estáveis destroem algo, elas são um tipo de prisão, apesar de obviamente haver áreas nas quais você precisa saber a resposta.
BRAGG:
Você disse que Daniel Martin foi um ponto de partida pra você… vai continuar? São temas recorrentes que já te interessaram antes, mas em que sentido você diz que foi um ponto de partida?
FOWLES:
É um pontinho de partida no sentido em que lida com o presente, é mais próximo de mim do que…, apesar de eu não ser Daniel Martin, mas é certo que é mais próximo de uma parte minha e o estilo, suponho, é também mais realista. Não tenho certeza se vou continuar com isso, mas gostaria… um romance que sempre me assombrou foi A Educação Sentimental de Flaubert. Foi um pouco, ficou um pouco atrás de A Mulher do Tenente Francês e está um pouco atrás dessa também… no sentido de ser um romance social documentário significativo. Digo, a tentativa de retratar uma época ou aspectos de uma época.
BRAGG:
Falando de tal época, então, numa época em que a ciência é… como você mesmo disse que os únicos capazes de resolver os problemas do mundo são os cientistas, onde entraria a arte, bruta como é?
FOWLES:
Eu começaria humildemente pelo entretenimento. Nunca vi nada de errado com a noção de arte como uma maneira de preencher o tempo, ocupá-lo. O que me parece ter dado errado com os romances britânicos e americanos é essa noção de que o escritor tem que escrever para a elite intelectual. O que os escritores modernos podem observar com grande tristeza é o relacionamento que os escritores vitorianos tinham com seu público. Você sabe, quando um escritor vitoriano diz, “estou escrevendo para um grande público”. Eu quero atrair um grande público e penso que já avançamos demais nessa de sermos herméticos, entende. O romance para um tal leitor profissional.
BRAGG:
A televisão tomou pra si essa ambição de atrair o grande público.
FOWLES:
Sim, sim, mas isso não é motivo para o livro dizer, “tudo bem, então estou livre dessa tarefa, posso cuidar agora da minha própria elite.” Parece que eu estou tentado a escrever mais elaboradamente e a usar, pela falta de uma palavra melhor, um estilo mais avant garde do que eu geralmente uso, quero dizer, isso é… Eu vejo um certo dever socialista no escritor, se você adere aos princípios do socialismo, você não deveria tentar se afastar do grande público. Se você puder atraí-lo, se puder escrever pra ele, então esse é o seu dever.
BRAGG:
Onde entra esse “dever”? Você disse que o escritor se encontra em algum lugar entre um pastor e um professor. Essa afirmação soa bem...
FOWLES:
Claro que não posso negar que tem coisas que eu gostaria de ensinar às pessoas. Pode ser apenas sobre sensações, mas sou um escritor de opinião, sim.
BRAGG:
Que tipo de coisas você gostaria de ensinar às pessoas?
FOWLES:
Na falta de palavra melhor, humanismo, sim. Penso que mais humanismo, mais inteligência.
BRAGG:
O que você quer dizer com humanismo?
FOWLES:
Bem, é uma palavra difícil de definir, mas suponho que tenha um significado simples, como respeito por outros seres humanos. Assim como a tradição liberal como um todo, ou, para usar o termo do século XVIII, a tradição iluminista da vida européia. Gosto mundo da literatura iluminista, do iluminismo europeu. Seja lá o que tenha sobrevivido daquela para a nossa época.
BRAGG:
Você acredita que é importante para as pessoas… tanto as pessoas quanto os personagens nos seus livros… entenderem o máximo possível?
FOWLES:
Sempre gosto de ter um personagem nessa situação no meu livro, porque acredito que dê ao livro uma certa ulterioridade. Um tipo de arquétipo que uso para associar ao livro é aquele da jornada. Essa, a história de aprendizagem na qual o personagem principal ou central tem que aprender algo, traz uma certa energia para a narrativa, e também acaba pescando o leitor, já que a maioria deles também quer aprender algo. Então é um tipo de mecanismo. Acho que é um mecanismo no livro.
BRAGG:
Você falou sobre narrativa. Acredita que ser um contador de histórias, para ser modesto, é algo que vem naturalmente ou você precisa trabalhar isso e tentar fazer a narrativa…?
FOWLES:
Não, eu não preciso trabalhar nisso, porque acontece que ao longo da minha vida, desde que eu era garoto, eu amava histórias mais do que qualquer coisa. Muito mais do que a qualidade, a sensação, ou o estilo. Eu amava a narrativa pura e simples. É por isso que eu disse várias vezes que considero Daniel Defoe meu avô na ficção inglesa, porque amo a legibilidade do Defoe, a maneira como ele te atrai. Não sei porque eu tenho um talento, se é que eu tenho, para contar histórias em particular. Não sei porque me atrai. Existem vários tipos de escritores que admiro no campo intelectual, George Eliot, por exemplo, mas nunca consigo me entender com eles porque sinto que a história, exceto em Middlemarch, de alguma forma não é poderosa o bastante. Existem poucos autores que conseguem escrever bem o suficiente em outras áreas, mas falham na história, que é o que me interessa. Virginia Woolf… consigo suportar a falta de habilidade narrativa dela porque ela é uma escritora excepcional de outras formas. Joyce, obviamente, mas não tem muitos. Isso me distancia bastante da escrita moderna, claro…
BRAGG:
Por que você acha que muito da escrita moderna perdeu interesse e energia pela narração...pela narrativa? Estamos sempre falando sobre a divisão entre a escrita moderna, que é constituída de poucas pessoas, você sendo provavelmente uma delas, que decide entre o que é visto por um pequeno grupo de literatos em Nova York e Londres como bom, coisa que não é de forma alguma amplamente divulgada, e o que é amplamente divulgado, esse grupo não considera bom de jeito nenhum. O bom e conhecido, o bom e popular… há um tipo de abismo entre os dois, não?
FOWLES:
Penso que os grandes intelectuais literários tanto de Londres quanto de Nova York perderam contato com qual deveria ser a função da literatura.
BRAGG:
Você acha que é por causa de Londres ou mais pela influência acadêmica?
FOWLES:
Veja bem, o mundo acadêmico não ajudou nem um pouco ao superglorificar o que, a meu ver, é pseudo intelectualismo, não é verdadeiramente intelectual. Tem o brilho do avant gardismo, experimentalismo, intelectualismo, o que você quiser… e acho que isso é uma traição dos vendedores. E também profundamente anti-socialista. O grande crítico literário desconhecido dos últimos 50 anos pra mim é George Lucaks, o húngaro. Ele tem defeitos, como todos sabemos, mas sua mensagem só não chegou ainda no oeste. Pra mim a mensagem dele não é fundamentalmente marxista. É mais humanista.
BRAGG:
Como você descreveria a mensagem dele?
FOWLES:
Acredito que, independente da sua visão política, o escritor não pode se deixar levar pela moda intelectual. Existe uma forma de contrato, do qual a gente estava falando agora pouco, entre o escritor e um público consideravelmente grande. Se o escritor usa um estilo experimentalista, técnicas experimentalistas, tudo bem, ele tem total liberdade de fazer isso, só acho que ele deve se perguntar, “eu estou fazendo algum bem com isso?” No geral, ele está ensinando o padre a rezar missa, mas tem essas outras pessoas lá fora que não conseguem apreciar esse tipo de escrita. Ele está perdendo elas completamente. Isso pra mim não é socialismo.
BRAGG:
Concordo.
FOWLES:
Isso não é humanismo. Não, vou te dizer o que eu acho terrível. É a relação entre a arte avant garde e uma certa vertente da Nova Esquerda. Sabe como é, essa arte experimental iconoclasta deve automaticamente ser de esquerda. Essa é pra mim uma das maiores ilusões do século. Não vejo como pode ser, porque não importa o quão contracultura seja, é fundamentalmente elitista. É hermético, é igual a todos aqueles movimentos do século XIX, simbolismo e os outros.
BRAGG:
Concordo com você nesse ponto. Também penso que o tom acadêmico na crítica e nas convenções de partido que dominam as resenhas no país e na América buscando coisas que se provem virtudes do passado, sejam elas do século XVIII ou XIX.
FOWLES:
Eles são donos de lojas. Você sabe, metade dos acadêmicos… críticos tanto na América quanto na Inglaterra… são donos de lojas. Eles fazem um negócio com alguém e se apegam a isso num grau que chega a ser absurdo. Nós precisamos muito de um novo Voltaire para…
BRAGG:
Zombar deles.
FOWLES:
Sim, para escrever um Cândido sobre eles, sim.
BRAGG:
Você gostaria de fazê-lo?
FOWLES:
Eu, infelizmente, não tenho essa perspicácia toda. Precisamos de um novo George Orwell, mas ele não está por aí, infelizmente.
BRAGG:
Quando você saiu do emprego e se tornou um escritor em tempo integral… a maneira mais fácil, você sentiu uma pressão ou se acomodou feliz e facilmente a isso?
FOWLES:
Muito, mas muito facilmente. Suponho que haja algo perverso e pagão em mim, mas eu nunca admirei muito trabalhar. Nunca vi muita virtude em fazer um trabalho que você não aprecia. Não considero escrever um trabalho, sabe. Me dá tanto prazer que até mesmo quando não estou indo bem, é prazeroso. Me dá muito mais trabalho viver quando não estou escrevendo.
BRAGG:
Como você faz com um romance? Você escreve todos os dias quando começa um livro?
FOWLES:
Não, não tenho uma rotina. Eu não escrevo se não sinto vontade, exceto durante uma fase, a última, quando você está revisando e precisa ser seu próprio disciplinador. Mas no rascunho inicial… acho difícil descrever. Você só sabe que vai fluir e aí trabalho pesado às vezes, quatorze horas por dia, ou algo assim, mas normalmente não tenho uma rotina fixa, um planejamento, nada disso.
BRAGG:
Você tem algum padrão de leitura ou você lê o que passar na sua frente?
FOWLES:
Não tenho nenhum, é a mesma coisa. Eu coleciono livros antigos, não por seu valor, não pela coisa da primeira edição, nada disso. Coleciono porque eu amo romances fora do padrão, memórias e peças também… o tipo de livros que a maioria das pessoas já esqueceu. Suponho que eu tenha uma boa coleção hoje em dia que nenhum outro colecionador de livros gostaria de ter. O que eu gosto em qualquer livro é esse jeito de máquina do tempo. Aquilo que te transporta de volta para a época em que se passava a história, o que quer dizer que eu gosto mais dos livros de memórias históricas. Amo a sensação de poder, de repente, viver há duzentos anos atrás. Julgamentos antigos, gosto muito de julgamentos de assassinato. Claro que eles também passam, às vezes, a sensação de estar numa refilmagem, de existir na mente de outras pessoas do passado.
BRAGG:
Você mencionou que não gostava em particular da vida literária de Londres. Você não gosta de parte alguma da vida literária? Ou ser uma figura literária é algo que te preocupa?
FOWLES:
Bem, na minha vida privada eu não sou uma figura literária. Nenhum dos meus amigos mais próximos são pessoas literatas. Depende muito do que você quer dizer com vida literária. Eu conheço muito bem um outro escritor, mas nós nunca discutimos livros, ou escrita, ou quase nada. Mas o circuito de coquetéis, festas de editores e todo o negócio, não, só não.
BRAGG:
Eu estava pensando aqui em algo que Daniel Martin diz no livro. Ele fala, “toda arte, da poesia mais bela até o show de strip mais furreca, tem a mesma cláusula escrita. Daqui em diante você irá se expor ao público, e irá sofrer tudo que isso pressupõe.”
FOWLES:
Sim, penso que isso é verdade.
BRAGG:
Bem, no seu caso, o que se expor ao público pressupõe?
FOWLES:
Principalmente o problema de expor a verdade, ou algo que seja razoavelmente verdadeiro. Porque assim como todo escritor, durante qualquer conversa ou situação, consigo também pensar em outras alternativas pra elas. Não sou um grande conversador, principalmente porque estou sempre construindo outras conversas além daquela que já está acontecendo e da qual eu faço parte.
BRAGG:
Que outra conversa você está construindo agora, além desta que estamos tendo?
FOWLES:
Bem, agora não estou, porque são condições bem difíceis. Estou falando de situações privadas, mais relaxadas. Porque quando se é um escritor, você constrói uma verdade melhor impressa, aquela que você pode revisar e revisar constantemente, mais do que numa conversa onde só se tem uma chance. Eu desconfio do diálogo falado no sentido ordinário, não artístico, da palavra. Nunca acho que consigo me expressar completamente numa conversa comum. Parcialmente, isso se deve ao fato de que criar romances é uma experiência rica e complexa. Eu penso que é impossível passá-la de qualquer outra forma mais breve que um romance.
BRAGG:
Você já pensou, quero dizer, você pensa no romance em comparação à poesia e a peças teatrais? Você acha que ele pode fazer coisas que outras artes não podem fazer?
FOWLES:
O romance, sim, penso que tem um território definido que outras artes literárias…
BRAGG:
É um tipo de comentário comum já muito batido, não é, o de que o romance está morto por causa da televisão e do cinema e etc…?
FOWLES:
Ah, isso é loucura. Totalmente loucura.
BRAGG:
É loucura. Por que você acha isso?
FOWLES:
Existem várias razões óbvias. O fato de que em um romance você pode analisar pensamentos e o inconsciente de uma forma que as câmera nunca podem. Tem várias coisas técnicas. Num romance você pode alterar cenários, a época, tão facilmente quanto qualquer outra coisa. Isso começa a gerar grandes problemas quando você tem que começar a fotografar, mas penso que uma razão vital é que a palavra não é uma imagem exata. Se eu digo uma frase como, “Ela andou pela rua”… se isso não for um roteiro de filme e que, portanto, é filmado, então tudo que o espectador conseguirá ver é uma “ela” andando pela rua. Num romance, é o leitor que tem que contribuir mais.
Cada leitor vai ver a frase “Ela andou pela rua” de uma maneira um pouquinho diferente. Isso porque ele precisa criar a partir da sua própria memória. Pense por exemplo nos romances mais famosos, Guerra e Paz e Jane Austen, e em todos os milhões e milhões de leitores desses romances. Ninguém conseguiu recriar, nenhum leitor conseguiu recriá-los da mesma forma. Pra mim, essa é a riqueza maravilhosa que também se aplica à poesia. Sobre a prosa e a poesia, essa é a extraordinária liberdade de comunhão.
É um tipo de relacionamento entre o leitor e o autor. Algo que desapareceu nas artes visuais. A câmera é uma coisa fascista. Ela diz: essa é a imagem que você está autorizado a ver. E isso anula essa liberdade de imaginação que as palavras e sinais verbais possuem. É por isso que eu tenho total certeza de que pode até ser que o romance morra, mas a prosa, o sinal verbal, nunca vai morrer, a poesia não pode morrer.
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